Judicialização da saúde no Brasil: Entrevista com Daniel Wang

Em um cenário de recursos escassos e uma sociedade com padrões epidemiológicos diversos como o Brasil, determinar o que é prioritário no acesso à saúde e o que deve ser o foco dessas prioridades é complexo. Diante disso, a “judicialização da saúde” – fenômeno das ações judiciais contra os sistemas de saúde – é um conceito que representa a disputa por recursos. 

Em entrevista à Umane, Daniel Wang, professor de Direito da FGV-SP e Doutor em Direito pela London School of Economics and Political Science (LSE), afirma que “a  judicialização da saúde tem sido motivada sobretudo por demandas pelo fornecimento de tratamentos de alto custo não incorporados ao SUS”. Wang também aponta que “como essas ações possuem elevado grau de sucesso nos tribunais, uma parte crescente do orçamento da saúde é destinada ao cumprimento de decisões judiciais”. 

Para o professor, o cumprimento de ordens judiciais referente aos processos de judicialização da saúde tem custo de oportunidade e impacto distributivo, ou seja, o sistema de saúde retira de outras políticas de saúde os recursos para cumprir essas ordens judiciais. Ele ainda relembra que os tratamentos que não são incorporados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), não passaram, ou não foram aprovados, pelo processo de avaliação de tecnologia em saúde, ou seja, “não possuem, necessariamente, uma avaliação rigorosa de efetividade e de custo efetividade”, que são critérios fundamentais para promover tomadas de decisão adequadas e para a eficiência na política de saúde.

Fluxo de incorporação de tecnologias em saúde no SUS  (fonte: Ministério da Saúde)
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 Acerca das principais causas da judicialização na saúde pública brasileira, Wang reitera que a judicialização decorre primeiramente da discrepância entre a demanda em saúde e a capacidade do sistema de atender essa demanda”, e que essa não é uma característica brasileira, “é um problema global que afeta todos os sistemas de saúde.”

Entretanto, no caso do Brasil, por ser um país de renda média e com um sistema de saúde subsidiado e subfinanciado, o cenário se torna “ainda mais dramático”. Além disso, o professor destaca que a probabilidade de um indivíduo ganhar uma ação aqui é muito grande, isso porque “o Judiciário tende a ignorar os impactos orçamentários de sua decisão e dá pouca atenção para a questão da evidência científica – o que cria incentivos para ainda mais judicialização” e possibilita a exploração do cenário por outros atores. 

Um setor que tem utilizado a judicialização da saúde para se beneficiar é a indústria farmacêutica, que “já percebeu que a judicialização é uma estratégia muito eficiente para vender seus produtos sem precisar passar por um processo de avaliação da tecnologia ou negociação de preço com o SUS”, aponta.

Como alternativas à judicialização, Wang propõe, pelo menos, três ações:

  • Ter um fluxo administrativo para lidar com demandas em saúde não atendidas e evitar que se tornem ações judiciais. Iniciativas como parcerias com a Defensoria Pública, nas quais a Defensoria encaminha o caso para o sistema de saúde para buscar uma resolução nas possibilidades da política pública antes de ingressar com uma ação. 
  • Produzir dados e informações para entender se a judicialização não decorre de algum vazio assistencial que pode ser resolvido. 
  • Ter sempre muita clareza e consistência na hora de fazer decisões alocativas de recursos para justificar à sociedade e ao Judiciário as escolhas difíceis que precisa fazer.

O professor também alega que o Judiciário precisa ter um conjunto de decisões mais consistente sobre quais são efetivamente os direitos dos pacientes e os deveres do SUS, “até o momento, o STF não definiu a tese do Tema de Repercussão Geral n.6, com os parâmetros para definir as circunstâncias em que o Judiciário pode ordenar o fornecimento de tratamentos não incorporados ao SUS”. 

O argumento é de que quando existe mais clareza quanto a esses parâmetros, há menor incentivo para judicializar. A incerteza – quando os dois lados acham que têm razão – é um incentivo ao conflito. Além disso, o “Judiciário também precisa entender que sistemas de saúde precisam fazer escolhas difíceis e, portanto, considerar com mais atenção as políticas de saúde do SUS”.

Mas afinal, é possível equilibrar os direitos dos pacientes com os recursos escassos em saúde? Para Wang, é necessário “superar a ideia de que há um conflito entre direitos do paciente vs. recursos”. Satisfazer os direitos dos pacientes dependem de recursos, afinal, remédios têm um preço, hospitais têm um custo, profissionais têm remuneração, etc.. “O que existe, na realidade, é a disputa de diferentes demandas legítimas em saúde por recursos escassos. É saúde vs saúde; direitos vs direitos”. 

Para o professor, uma vez que não é possível satisfazer todas as demandas, porque recursos são escassos, a questão deve ser: como distribuir os recursos que temos da forma mais justa possível? Quando se trata de medicamentos, por exemplo, que contempla a maioria das judicializações, “a resposta passa por um processo de avaliação de tecnologia em saúde em que todos os tratamentos sejam analisados de forma transparente, com participação social, com rigor científico e as decisões sejam tomadas a partir de critérios claros de política pública e aplicados consistentemente”, além do “fortalecimento de órgãos de avaliação como a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (CONITEC), que precisa ser levado mais a sério pelo Judiciário ao invés de ignorado, como tende a acontecer atualmente”.

Segundo informações de Wang, os parâmetros utilizados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para resolução da judicialização na saúde pública, são parâmetros para casos envolvendo tratamentos sem registro da ANVISA (Tema 500 de Repercussão Geral), mas o STF ainda não definiu os parâmetros para demandas de tratamentos não incorporados ao SUS (Tema 6 de Repercussão Geral), que representam a maior parte da judicialização. “Parece haver um consenso de que o fornecimento judicial de tratamentos não incorporados deve ser excepcional, mas não há consenso sobre quais seriam essas circunstâncias”. Segundo uma notícia publicada pelo STF, a questão será retomada em breve. 

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Quem é Daniel Wang?

Daniel Wang é Professor de Direito da FGV-SP e Doutor em Direito pela London School of Economics and Political Science (LSE). Mestre em Filosofia e Políticas Públicas pela LSE. Mestre em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Bacharel em Ciências Sociais pela USP. Bacharel em Direito pela USP. Foi Professor de Saúde e Direitos Humanos no Departamento de Direito da Queen Mary University of London e Research Postdoctoral Fellow no Departamento de Direito da LSE, onde lecionou Direitos Humanos. Daniel possui publicações nas áreas de Direito Constitucional, Direito Público, Direitos Humanos, Direito da Saúde e Bioética. Foi vencedor do prêmio “Políticas Públicas e Equidade: avanços práticos” do Centro de Estudos de Administração Pública e Governo (CEAPG) da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (FGV-SP)  em 2009 e do “Concurso de Artigos Jurídicos sobre o Direito à Assistência Social” do Ministério do Desenvolvimento e Combate à Fome e pelo Ministério da Saúde [com Natália Pires] em 2014. Entre 2016 e 2018, foi membro do Comitê de Ética em Pesquisa do National Health Service da Inglaterra. Atualmente, é membro do Comitê de Bioética do Hospital Sírio-Libanês de São Paulo.