O aumento do consumo de produtos ultraprocessados no Brasil é motivo de preocupação entre profissionais de saúde, pessoas pesquisadoras e gestores públicos. Nos últimos dez anos, o consumo pela população brasileira teve aumento médio de 5,5% (Consumo de alimentos ultraprocessados no Brasil: distribuição e evolução temporal 2008–2018).
Esses produtos, que são diretamente associados ao desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) como obesidade, diabetes e hipertensão, são formulações industriais feitas com inúmeros ingredientes que contêm pouco ou nenhum nutriente, como refrigerantes, biscoitos e bolachas de pacote, macarrão instantâneo, embutidos (presunto, mortadela, etc.), além de alimentos prontos para aquecer.
Segundo o Covitel (2023), Inquérito Telefônico de Fatores de Risco para Doenças Crônicas não Transmissíveis em Tempos de Pandemia, de 2022 para 2023, houve 90% de aumento na prevalência de obesidade entre a população jovem (18 a 24 anos). A pesquisa ainda aponta que 1,4 milhões (8,2%) de jovens nesta faixa etária têm hipertensão, e 750 mil (2,2%) diabetes.
Para explorar os desafios e as possíveis soluções para reduzir o consumo dos ultraprocessados, conversamos com Maria Laura Louzada, professora do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde (NUPENS) da mesma instituição.
Desafios no combate ao consumo de ultraprocessados
Para Maria Laura, o primeiro grande desafio é o marketing agressivo da indústria de ultraprocessados. Empresas do setor investem fortemente em publicidade e estratégias de design e comunicação, que circula sem regulação adequada no Brasil, principalmente pelas redes sociais, atingindo especialmente crianças e jovens. “Permitir que as crianças tenham um contato contínuo com esse tipo de publicidade aumenta as chances de que hábitos alimentares ruins sejam formados e perdurem até a idade adulta, favorecendo a instalação precoce de condições crônicas de saúde”, pontua a especialista.
Outro desafio é a acessibilidade econômica dos ultraprocessados. Muitas vezes, esses produtos são mais baratos que alimentos in natura, tornando-se a opção mais viável para populações de baixa renda, “isso significa que as populações economicamente mais desfavoráveis da nossa sociedade, e que tendem a ter um acesso à saúde e à informação de qualidade mais precário, são as que mais sofrem os efeitos do consumo desses produtos”. Para a professora, um dos caminhos para mitigar esse problema seria a aprovação final da taxação de bebidas açucaradas, que está em discussão no Congresso Federal.
Maria Laura também destaca o lobby da indústria de ultraprocessados como mais um obstáculo. A resistência política ao uso do termo “ultraprocessado” e às regulamentações desses alimentos dificulta o avanço de projetos de lei que poderiam proteger a população, em especial a população infantil. Leia mais sobre o impacto dos ultraprocessados na população infantojuvenil.
A importância dos estudos longitudinais
Para compreender melhor os impactos do consumo de ultraprocessados no Brasil, o estudo NutriNet Brasil tem se mostrado uma ferramenta essencial. Estudos longitudinais como este permitem investigar associações entre padrões alimentares e o surgimento de DCNT. O NutriNet utiliza a Classificação Nova, que agrupa os alimentos em quatro categorias: in natura, minimamente processados, ingredientes processados, processados e ultraprocessados, e assume que a extensão e o propósito do processamento a que alimentos são submetidos determinam não apenas seu conteúdo em nutrientes, mas outros atributos com potencial de influenciar o risco de obesidade e de várias outras doenças relacionadas à alimentação.
Com questionários validados cientificamente, o NutriNet cruza dados de consumo alimentar com o surgimento de novos casos de doenças ao longo do tempo. “Estamos começando a gerar evidências robustas que poderão nortear políticas públicas de alimentação e saúde no Brasil”, afirma Maria Laura. O objetivo é criar estratégias que dificultem o acesso a alimentos ultraprocessados, contribuindo para a redução de doenças crônicas não transmissíveis e o alívio da pressão sobre o Sistema Único de Saúde (SUS).
A implementação de políticas públicas voltadas para a redução do consumo de ultraprocessados já é uma realidade em muitos países, servindo de inspiração para o Brasil. Um exemplo bem-sucedido é a taxação de bebidas açucaradas no Chile, que resultou em uma queda de mais de 20% no consumo domiciliar dessas bebidas em apenas um ano. O Brasil segue esse caminho, com a proposta de taxação em andamento.
Outra medida importante já adotada no Brasil é a rotulagem nutricional frontal, que entrou em vigor em 2022. Produtos com alto teor de açúcar, sódio ou gorduras saturadas agora recebem selos de advertência em seus rótulos, auxiliando os consumidores a escolher mais conscientemente. Países como México e Argentina, que também implementaram essa política, viram uma redução no consumo desses alimentos, além de estímulo a outras medidas, como a proibição de personagens infantis em embalagens.
Para Maria Laura, a regulamentação da publicidade de produtos ultraprocessados é uma demanda urgente que a população deve fazer ao poder público. “Precisamos proibir ou limitar essa publicidade a determinados horários e locais”, afirma. Ela também defende a proibição da comercialização de ultraprocessados em escolas, medida que já foi adotada em algumas cidades brasileiras, como Niterói e Rio de Janeiro. Essas políticas visam proteger as crianças e jovens, grupos mais vulneráveis ao marketing agressivo e ao consumo excessivo desses produtos.
O combate ao consumo de ultraprocessados no Brasil exige uma ação coordenada entre a sociedade, o governo e a academia. Estudos como o NutriNet Brasil são essenciais para gerar dados robustos e embasar políticas públicas eficazes. Ao mesmo tempo, a população deve continuar demandando ações que protejam a saúde coletiva, como a taxação de bebidas açucaradas, a regulamentação da publicidade e a adoção de medidas em escolas e outros espaços públicos. Se quisermos reduzir o impacto das DCNT no Brasil e garantir um sistema de saúde sustentável, é preciso construir políticas públicas fortes, baseadas em evidências científicas.
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Sobre a entrevistada:
Maria Laura é professora do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP (NUPENS/USP). Desde 2023, ocupa o cargo de vice-coordenadora do NUPENS/USP e é orientadora do Programa de Pós-graduação em Nutrição em Saúde Pública da USP. Editora associada da Revista de Saúde Pública, é membra da Comissão de Epidemiologia da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) e do Departamento de Meio Ambiente, Sustentabilidade e Cultura Alimentar da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade (ABESO) e autora do livro Epidemiologia Nutricional Aplicada à Obesidade, publicado pela Edusp em 2024. Em 2017, esteve em licença maternidade e, portanto, mais distante das atividades acadêmicas. Com grande interesse no estudo dos efeitos do ultraprocessamento de alimentos nas condições de vida e saúde das populações, defende uma epidemiologia crítica, profundamente comprometida com a responsabilidade social.
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